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História do futebol colombiano: a Era dos Narcos


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História do futebol colombiano: a Era dos Narcos

Após apresentar o nascimento do futebol colombiano até sua Era de Ouro, chegou a vez da Era dos Narcos. Antes, porém, uma reflexão necessária…

Escrever sobre os anos 1980 na Colômbia é uma tarefa muito complicada, especialmente neste momento em que milhares de séries, filmes e livros com um olhar romântico sobre o período são lançados. Muitas obras de ficção estão glamourizando a máfia e transformando pessoas como Pablo Escobar e Gilberto Rodríguez Orejuela em novos “Don Corleones”, figuras cultuadas, com uma certa “aura” e admirabilidade. Mas é nosso dever jamais esquecer que tudo o que se passou então foi horrível. Tais pessoas não são boas sob nenhum prisma.

Não devemos relativizar o que Pablo, Gilberto entre outros fizeram; não devemos transformá-los em novos popstars. Os “narcos” mataram milhares de pessoas, seres humanos que existiram de verdade, pertenceram a famílias reais e que sofreram (e ainda sofrem) muito com suas perdas. Estes homens aterrorizaram não somente uma nação, mas todo um continente por muito tempo e não merecem nenhum tipo de louvor.

É claro que histórias como importar uma quantidade enorme de animais africanos, levantar hotéis 5 estrelas em ilhas do Caribe para lavar dinheiro, construir sua própria prisão com cassino e cinema, ter a espada de Simón Bolívar, queimar dinheiro para aquecer um filho ou se propor a pagar a dívida externa da Colômbia são muito sedutoras (embora nem sempre verdadeiras). O problema é que, quando menos percebemos, nos deixamos levar e nos tornamos vítimas de uma espécie de Síndrome de Estocolmo, olhando com admiração para figuras nefastas e danosas.

Eu, de minha parte, quando comecei meus estudos sobre Colômbia, conheci o irmão de Pablo em Medellín. Na época, eu tinha uma camisa com seu rosto estampado e gostava muito de suas histórias. Com o tempo, fui entendendo o quanto a minha postura contribuía para justificar uma série de atrocidades que acontecem na Colômbia até hoje.

Por último, antes de partir definitivamente ao que interessa, utilizo este espaço para convidar todos os leitores a refletir sobre todo conteúdo gerado por séries e documentários sobre o assunto. Em primeiro lugar, é importante lembrar que séries não são documentários e não possuem compromisso algum com a verdade – o compromisso é com o entretenimento. Documentários, por outro lado, sempre estão partindo do ponto de vista (e obedecendo aos interesses) de alguém.

Aos que se interessam em estudar o tema, sugiro que leiam livros, busquem documentos, procurem saber mais sobre figuras como Álvaro Uribe, Manuel Noriega, Daniel Ortega. Procurem entender como o narcotráfico nos influencia aqui no Brasil, como se trata de algo que faz parte de um grande sistema. É no mínimo ingênuo acreditar que uma indústria global, que movimenta bilhões de dólares e afeta milhares de pessoas, resulta da ação de um ou outro indivíduo isoladamente.

Guerra ao comunismo e liberdade para os Narcos

Pois bem, se no artigo anterior falamos da primeira era dourada do futebol colombiano, neste falaremos da segunda. Assim como em sua primeira fase (e em toda a história do esporte pelo mundo), o futebol colombiano nos anos 1980 foi usado para desviar o olhar dos problemas políticos pelo qual passava o país no período, sendo grande parte deles fruto da época de “La Violência”, que já retratamos no primeiro artigo.

A Colômbia do final dos anos 1970, governada pelo Liberal Alfonso Michelsen, acabara de passar por um grande ciclo de produção de Café, um dos principais vetores da economia local. Este momento próspero veio acompanhado por uma inflação que beirava os 40% ao ano e um aumento abusivo do custo de vida. Com esta pequena crise, e um grande número de demissões, ocorreu um ganho de força dos sindicatos.

Ao contrário dos demais países da região, a Colômbia não passou por um grande período de ditadura na segunda metade do século XX, somente uma intervenção militar de 4 anos entre 1953 e 1957. Contudo, durante o governo Michelsen, a repressão pode ser comparada aos acontecimentos mais dramáticos do continente. A coerção aos sindicatos foi grande e a esquerda armada, principalmente grupos como o M-19 e ELN, ganhou muita força.

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Apaixonado por futebol, Gabriel García Marques foi deportado em uma época turbulenta na Colômbia (Arquivo)

Neste momento da história, as drogas já existiam na Colômbia e os grandes traficantes tinham vida fácil – a atenção do governo estava toda voltada para a guerrilha. A gestão de Julio Cesar Turbay, sucessor de Michelsen, foi marcada por torturas e exílios. Gabriel García Márquez foi um dos exilados deste período, acusado, entre outras coisas, de financiar a guerrilha urbana M-19, responsável por sequestrar a embaixada da República Dominicana em fevereiro de 1980, mantendo reféns por quase dois meses e atraindo toda atenção da mídia internacional para a violência na Colômbia. Pablo Escobar aproveitou a desatenção das autoridades em relação às drogas e executou seus mirabolantes planos políticos e sua ostentação desenfreada.

Os narcotraficantes entram em campo

É muito complicado definir quando e onde a máfia penetrou no futebol colombiano. A versão mais aceita diz que, ao final dos anos 1970, um grupo desconhecido de traficantes de maconha em Santa Marta já investia no Únion Magdalena (clube que revelou Carlos Valderrama). Esses investimentos eram pequenos, não resultaram em títulos nem em grandes contratações – muito em função disso, trata-se de um período pouco estudado. Já nos anos 1980, os grandes cartéis da Colômbia, sendo o Cartel de Medellín liderado por Pablo Escobar e o de Cali pelos irmãos Rodríguez Orejuela e Gonzalo Rodríguez Gacha, investiram pesado no futebol do Atlético Nacional, América e Millonarios, respectivamente.

O narcotráfico viu o futebol não somente como uma forma de lavar dinheiro e diversificar suas atividades, mas também como uma porta para a alta sociedade. É importante lembrar que os chefes tinham dinheiro, mas não necessariamente influência e investir no esporte foi uma forma de conseguir ascender na sociedade colombiana.

Irmãos Orejuela e América de Cali

Ainda com Turbay na presidência, no final da década de 1970, os irmãos Rodríguez Orejuela chegaram ao América de Cali, depois de uma tentativa frustrada de entrar no quadro de sócios do Deportivo Cali (do qual os dois eram torcedores fanáticos). Até então, o América era um clube sem títulos expressivos. O dinheiro das drogas, porém, permitiu a chegada de atletas de primeira grandeza, que dificilmente jogariam lá de outra forma.

O primeiro título veio em 1979 com o técnico Gabriel Ochoa Uribe. Nos anos 1980, o América venceu cinco vezes seguidas o Campeonato Colombiano e foi três vezes finalista da Copa Libertadores, algo completamente impensável para um clube colombiano até então. Jogadores de renome em todo continente chegaram ao time, com quantias exorbitantes sendo gastas para trazer craques do nível de Roberto Cabañas, Julio Uribe e Ricardo Gareca (sim, ele mesmo). Contudo, depois da derrota do América para o Peñarol do Uruguai na final da Libertadores de 1987, os investimentos cessaram.

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Diego Aguirre marca nos segundos finais para o Peñarol e o América é vice da Libertadores pela terceira vez consecutiva (Arquivo)

Bem, os tempos na Colômbia eram outros e vida dos narcotraficantes já não estava tão fácil. O Ministro Lara Bonilla (que acabou assassinado a mando de Escobar por denunciar o envolvimento do então parlamentar com drogas), a essa altura, já havia denunciado a presença da máfia no futebol. A gestão de Belisário Betancur ficou marcada pela tomada do Palácio da Justiça pelo M-19 em 6 e 7 de novembro de 1985. Depois deste grande episódio, iniciou-se um processo de paz com as guerrilhas e os narcotraficantes passam a ser alvo prioritário do Estado.

Embora a Colômbia tenha sido o país menos afetado pela crise no continente ao longo dos anos 1980, inclusive se vendendo como um lugar em plena evolução (principalmente a cidade de Medellín com a implantação do metrô e inauguração de seu principal museu), a situação era complicada. Em 1974, o país ganhou a eleição para ser sede do Mundial de Futebol de 1986, mas, em 1982, o presidente declarou que a Colômbia não possuía condições financeiras para atender às exigências da FIFA e preferia destinar os recursos para outros fins. Embora a justificativa pareça nobre, a grande verdade é que todos sabiam que a Colômbia passava por um grande conflito e organizar uma Copa do Mundo lá era absolutamente impossível.

Voltando ao América, é preciso dizer que o Cartel de Cali, responsável por toda essa aventura financeira, disputava com o Cartel de Medellín o título de maior da história da Colômbia. Durante anos, trabalhou-se com a hipótese de que o único interesse dos irmãos Orejuela em relação ao América era serem aceitos pela elite local, mas, segundo o livro do filho do maior nome do cartel de Cali, o clube foi apenas um instrumento de lavagem de dinheiro oriundo da coca. Segundo ele, “compravam jogadores que valiam cem mil dólares e diziam que valiam dois milhões” para legalizar o dinheiro. Com o baixo controle de origem de moedas até então exercido pelo Banco Central local, acabou criando-se o cenário perfeito para a lavagem de dinheiro.

Gacha e Millonarios

Em 1983, outro grande clube do país, os Millonarios de Bogotá, era controlado por Edmer Tamayo, acusado de tráfico de drogas na cidade de Barranquilla. Após sua morte em 1986, a equipe passou a ser comandada por uma dupla de advogados, German e Guillermo, sendo o último assassinado dois anos após assumir a diretoria financeira.

O principal suspeito do assassinato de Guillermo é Rodríguez Gacha, um importante membro do Cartel de Medellín – para muitos, tão importante quanto Escobar. Além disso, Gacha é considerado o pai do para-militarismo de direita, responsável por uma grande quantidade de crimes na Colômbia até hoje. O narcotraficante nutria uma relação com mídia e torcida parecida com a que existe entre Abramovich e torcedores do Chelsea: o desejo por títulos está acima de qualquer coisa (vale lembrar que desde a época dourada, nos anos 1950, o clube tinha deixado de lado o protagonismo no futebol local).

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Torcida do Millonarios com uma bandeira em homenagem a Gonzalo Rodríguez Gacha, "El Mexicano" (Arquivo)

Dois anos após Gacha assumir o Millionarios, veio o primeiro título. O traficante formou uma máquina vencedora em 1987 e 1988 e, naturalmente, uma grande lavanderia de dinheiro ilícito proveniente do narcotráfico e da exploração ilegal de esmeraldas. Um adendo: a exploração ilegal de minérios é um dos grandes motores da máfia na Colômbia até os dias atuais, sendo que muitos grupos atualmente faturam mais com isso do que com as drogas. Depois deste período, Gacha se viu imerso em grandes custos para a criação de seus exércitos (que incluiu a “importação” de um general mercenário de Israel) e teve que diminuir os seus gastos com o futebol. Recentemente, o Millionarios abriu mão dos títulos conseguidos com apoio do narcotráfico.

No próximo texto da série, o envolvimento de Pablo Escobar com um dos maiores times da Colômbia, o Atlético Nacional de Medellín.

Ivan Alves Pereira
Doentes por futebol 

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Um caso que deve vir num texto futuro mas mostra como essa questão da mistura do narcotráfico com o futebol chegou a níveis alarmantes na Colômbia foi quando mataram um árbitro de futebol minutos depois dele ter apitado um jogo a mando do Cartel de Medellín, fato que chegou a cancelar o nacional do ano corrente.

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Recomendo o documentário: the two Escobars, que fala sobre narcotráfico e futebol. Muito bom.

Não sabia sobre ele, vou procurar aqui. Valeu!

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História do futebol colombiano: a Era dos Narcos (cont.)

Escobar e Atlético Nacional

Enquanto os Irmãos Orejuela se envolviam com o América de Cáli e Gacha com Millonarios (de Bogotá), na capital da Antioquia ocorria um caso muito curioso. Até então, absolutamente nada prova a ligação entre Pablo Escobar e o Atlético Nacional. Pablo nunca possuiu um cargo de diretoria, conselho ou foi patrocinador do clube (pelo menos oficialmente). O que existia era uma suspeita ligação do traficante com o presidente e maior acionista do clube, Hernán Botero Moreno. Moreno foi o primeiro narcotraficante extraditado aos Estados Unidos graças à investigação que comprovou que o colombiano utilizava sua casa de câmbio em Miami para lavar dinheiro e comercializar drogas.

Com a queda de Moreno, a vaga de presidente passou para as mãos de Hernán Mesa, cuja gestão desastrosa quase rebaixou o Atlético. Neste momento, Octavio Piedrahita, contrabandista de couro na cidade de Pereira, passou a utilizar o clube para lavar dinheiro até ser assassinado em 1986, quando El Verde passou a ser vinculado a Pablo Escobar.

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Escobar em um dos campos de futebol criados por ele em Medellín (foto: Difusión)
 

Pablo, ao contrário dos já citados, tinha uma ânsia incontrolável em se mostrar poderoso. Para ele, o poder era mais importante do que o dinheiro em si. Na opinião de muitos, ele só resolveu investir no futebol ao ver outros chefes do crime ganhando fama – inclusive, muitos pesquisadores defendem que, ao contrário do se acredita, Escobar nunca foi um apaixonado pelo Nacional, sendo, na verdade, torcedor do Independiente.

Escobar não tinha medo de ser violento, se mostrar violento e de chamar atenção por sua violência. Um grande exemplo disso foi o assassinato de Álvaro Ortega após um jogo do Atlético Nacional contra o América em que a atuação do árbitro não o agradou. O crime chamou atenção não somente na Colômbia, mas em todo o mundo, e marcou o início do império da cultura do medo no futebol local.

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Trecho de jornal colombiano retrata a onda de temor no futebol após o assassinato de Ortega (foto arquivo)

O feito mais relevante do Atlético nestes anos de influência de Escobar foi a conquista da Libertadores da América em 1989. O Nacional, ao contrário do América, não procurou investir em grandes nomes do exterior, montando um time competente com os destaques locais, entre eles Leonel Álvares, Rene Higuita e Andrés Escobar. A conquista é recheada de acusações de ameaças contra árbitros.

Ainda no final dos anos 1980, a liga finalmente permitiu patrocínio de empresas privadas e limitou o número de estrangeiros em quatro por time. Assim, através de empresas de fachada, Pablo Escobar injetou muito dinheiro no Nacional; em contrapartida, tinha direito a renda das partidas da equipe (uma verdadeira máquina de lavar dinheiro).

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Atlético Nacional campeão da Libertadores em 1989 

Na virada da década, o cerco contra o narcotraficante se apertou, e teve início uma grande pressão internacional contra a presença de Pablo no futebol. Antes da final do intercontinental de 1989, Silvio Berlusconi (não podemos deixar de rir agora) chegou a declarar que o “Milan iria lutar contra o Nacional para derrotar a parte suja do mundo”.

No início dos anos 1990, o Cartel de Medellín já vivia um grande processo de desmonte e o Estado endureceu na guerra contra Pablo. Investir no Nacional foi uma forma de mostrar poder frente o governo federal, deixando claro que a partir da violência tudo era possível e ajudando a disseminar a sensação de medo em toda Colômbia.

A Copa e a queda

Essa fase do futebol e da política colombiana acabou nas Copas de 1990 e 1994, respectivamente. Compelidos a sempre visitar Pablo em sua prisão, atletas do Nacional, principalmente o goleiro René Higuita, acabaram estabelecendo relações próximas com o narcotraficante. Higuita, inclusive, foi privado de disputar a Copa do Mundo dos Estados Unidos por ter passado quatro meses entre a virada de 1993 e 1994 na prisão acusado de intermediar um sequestro para Escobar, fato que não foi comprovado posteriormente.

A seleção da Colômbia, mesmo com todos os problemas internos, vinha para aquele Mundial com sua melhor geração, tendo como base o Nacional campeão de 1989 e embalada por uma vitória de 5×0 sobre a Argentina em Buenos Aires.

O triste fim dessa história vem junto com o assassinato do capitão do time do mundial, Andrés Escobar, em Medellín, duas semanas após a eliminação. Embora nunca sido comprovada, a versão mais aceita é que o crime decorreu de perda de dinheiro de traficantes com apostas, sendo Andrés responsabilizado pela eliminação da equipe (ele foi autor de um gol contra na derrota para os Estados Unidos em 1994).

Assim, de forma melancólica, acaba esse triste período do futebol, não só na Colômbia mas em todo continente.

Ivan Alves Pereira
Doentes por Futebol

 

 

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